domingo, 28 de agosto de 2011

Tem Um Anjo Triste Perto de Mim

Tem Um Anjo Triste Perto de Mim




_Vai tomar no cú,ladrão!
_Engole o que tu disse!
_Vai tomar no cú!
O pau pegou,rolamos na terra vermelha,soco e soco.Claro que ele passou da raia o ladrão sem vergonha.
_Vão jogar noutro lugar seus vagabundos!

Era dona Rola nos correndo da frente de sua casa,pegamos nossas bolitas e saimos abraçados,a briga já esquecida,nossos pés descalços pisando na terra vermelha,o suor escorrendo do rosto,formando uma linha preta embaixo do pescoço,fomos mais adiante, achamos um lugar , bem no portão da dona Rosa,fizemos o bôco,a raia :
_As brinques ou as devas?
_As devas!
O jogo começou,eu tava de olho numa olho de gato que meu amigo tinha ele numa de leite minha,pimba,ganhei!!!
_No teu cú,puto!Tu ta roubando ,acha que eu não vi!
_Engole o que tu disse!
_Tu vai engolir um soco nos beiços,tição!

E o jogo terminou era pauleira prá todo lado até que Dona Rosa,uma baixinha invocada abriu a janela:
_Vão jogar na puta que pariu seus filhos da puta,péra aí!
Quem disse que esperamos, só se via a poeira que nossos pés levantavam na tarde modorrenta,fui pra casa ,abri o portão entrei na casa de madeira pintada de cal branco,na sala uma tv em preto e branco marca Phillips,na cozinha um fogão à lenha,mamãe tava cozinhando umas tripas que ganhamos de minha tia que trabalhava no frigorífico,atravessei o pátio,me cuidando do galo doido do vô Abílio,ele nos corria a bicadas,vó Elvira também tava no

fogão,a cozinha de chão batido,o paneleiro com varias panelas penduradas,a talha de barro com aguinha fresca,a mesa escorada na parede de tábua,a chaleira com água quente cheia de chás,a cuia de prata ,olhei de revesgueio a panelinha de ferro fumegando costela de porco com arroz branco,a coisa alí tava melhor,fiquei .
Estava olhando terra de gigantes o Alemão enchendo o saco em roda,até que ouvi alguém gritando ,me chamando pro jogo.
Hoje fomos mais pra esquina ,todo mundo nos corria,dali jogamos um tempão ,neste dia a coisa tava russa, eu tava perdendo feio,um brilho de metal me chamou atenção,parei,no terreno tinha uma cadeira de rodas e um menino sentado olhando pra nós fixamente.

_Ei, cabeção,joga!
Voltei a me concentrar nas bolitas e assim passou o dia,já eram quase seis ,meu pai tava voltando do trabalho,tínhamos que estar em casa de banho tomado,todos bonitinhos.Todos santinhos.
Sei lá,mas na tarde do dia seguinte tava um silêncio pesado na rua são Pedro,não se via nenhum guri,nada,tentei descobrir o mistério,fui na casa de um amigo e matei a charada, era dia do bálsamo alemão,um elixir fedorento que nossas mães nos davam ,não sei pra que doença,mas que nos deixava mal,de cama,nunca na puta vida provei algo tão medonho.Não tendo

ninguém pra brincar ,me lembrei do garoto da cadeira,pras crianças é tão fácil fazer amizade,entrei portão adentro,o guri estava numa varanda,a casa era marrom,pátio enorme,arvoredo,uma horta ,os repolhos gigantes chamavam atenção:
_Oi!
_Oi!O menino da cadeira de rodas respondeu.
_Como é teu nome?Perguntei.
_Carlinhos.
_ O meu é Tição!
_Impossível alguém se chamar tição,riu ele com vontade,tem que ter nome de batismo!

Sua mãe, ao ouvir seu filho rindo, saiu na porta e espiou,ao me ver ela esboçou um sorriso,acenou com a cabeça e colocou o dedo na boca pedindo que eu não falasse que estava vendo,tive a impressão que era fato raro Carlinhos rir,que coisa!
Passei a tarde lá,foi servido suco,conversei tanto com meu novo amigo,ele era bem mais inteligente que eu,tirou a coberta que cobria suas pernas e vi dois gravetinhos magrinhos,me contou que não tinha amigos,nunca teve!Tinha uma irmã,não estudava porque sentia dores,sonhava em ser astronauta,e lia muito.

No outro dia voltei,não quis brincar com a cambada ,eu gostei do meu novo amigo,tinha algo nele que me fazia bem,levei meus homenzinhos,a cadeira era um forte,assim brincamos o dia todo,ele ria,eu ria,teve uma hora que gargalhou , sua família saiu toda e a casa foi tomada de felicidade,porque Carlinhos estava feliz,mas eu não atinava porque.
Passei a freqüentar aquele lar assiduamente,um dia cheguei e Carlinhos não estava na área,entrei na casa,eu já era íntimo,aliás, nunca vi outro amigo dele lá só eu,estava deitado,chorava de dor, a casa murchou,meu amigo sofria,todos sofriam,agarrei sua mãozinha branca,a testa suava,estava pálido,mas esboçou um sorrizinho fraquinho ao me ver,lhe disse que ficaria

bom,que no dia seguinte iríamos brincar um jogo novo que inventei:
_Dói,meu amigo,dói tanto!
_Tenho um plano,eu sempre tinha um plano,é o seguinte,tu passa a metade da dor pra mim,daí tu não sofre tanto!
Ele sorriu,lágrimas se formavam nos seus olhos,seus olhinhos estavam empoçados,quando rolaram ,cheguei perto do seu rosto pálido , passei a mão secando-as:
_Ei,não chora,porque se tu chorar eu também choro,assim são amigos!
Mas meu pedido era egoísta porque ao vê-lo chorar parece que alguém esfaquiava meu coração,doía vê-lo assim.O médico chegou deu um injeção e Carlinhos adormeceu.Fui pra casa,não quis olhar terra de gigantes,só queria pensar,eu tinha uma proposta pro meu amiguinho,aquilo de ficar o dia inteiro dentro de casa não tava certo, criança tem que descobrir sua rua,eu seria suas pernas e em troca ele me falaria das historias que ele lia nos livros e que encantavam tanto.

Cedo levantei,procurei minhas havainas,tomei café correndo,quando vi ele estava lá no mesmo lugar,tava melhor,sorriu ao ver,a crise tinha passado,puxei um mocho pro lado da cadeira de rodas,e fiz a proposta,ele ficou pensando sério,não sabia se podia,falou com a sua mãe se deixava sair com ele,a mãe me olhou no fundo dos olhos :
_Tu será o responsável pelo meu filho, tem consciência do que significa?
Significava cuidar dele, não deixar se machucar,não fazê-lo sofrer,logo eu que nunca tive nenhuma responsabilidade,mas olhando bem em seus olhos atingindo sua alma eu prometi ,ela viu que ,se preciso, eu daria minha vida por ele.

Sorriu e liberou, apartir daí mostrei meu mundo pra ele,meu mundo que era minha rua,minha casa,meus amigos ,eu jogava e Carlinhos ficava olhando e rindo,quando o nível baixava gargalhava que chegava a tossir,passou a freqüentar minha casa,e eu dormir ,de vez enquando, na dele.
_Tu ta me escondendo algo!
_Não,é impressão tua!
_Achei que fosse meu amigo!
_Não sou teu amigo,eu disse,sou teu irmão!
Ele sorriu feliz.
_Mas que tu ta escondendo ,isso ta!
Fiquei quieto,tava levando-o pra minha casa,lá ficaria até as quatro da tarde,enquanto isso sua família febrilmente arrumava os balões debaixo da parreira,era seu aniversario,eu tinha comprado um livro de presente.
No final da tarde o levei de volta e quando entrou olhou surpreso os balões coloridos,a mesa posta com um bolo quadrado enfeitado de chumbinho de prata,escrito com glacê”Feliz Aniversario”,os balões balançavam embalados pela suave brisa,pra beber tinha KSuco de framboesa,seu preferido,o meu era de uva.
_Parabéns pra você nesta data querida.......

Abraços,beijos,felicidade,riso,minha infância passava numa alegria que eu tinha certeza não terminaria,aprendi muito com ele,por não ir na escola seus pais caprichavam ensinado tudo pra ele , ensinaram o amor por livros e ele por sua vez me passou este amor,eu ensinei a bagaceragem da rua,na verdade fizemos uma troca,a vida era boa,eu era feliz.

Enquanto me dirigia pra sua casa eu ria antecipadamente,com uma garrafa de água embaixo do braço,naquele dia minha vó Elvira me garantiu que se eu colocasse um fio de cabelo arrancado pela raiz e pusesse numa garrafa , fechasse com um rolha, dali um tempo nasceria uma cobra.Já tinha feito a minha, agora tava indo fazer a do Carlinhos,estranhei o silêncio ,entrei,meu querido amigo tava deitado,já tinha presenciado isso tantas vezes,sentei no colchão ao seu lado,peguei a mãozinha magrinha,branquinha,conversei com ele contando da garrafa,mas não riu ,não falou nada,continuei falando sabia que estava fingindo,safado!

A mãe tava chorando,o pai andava pra là e pra cá, esperando o medico,quando este chegou, puxou o pijama do menino pra cima, colocou um negocio pra escutar seu coraçãozinho,a pressão,olhou pra mãezinha e fez sinal que não com a cabeça,ela soluçou alto,uma lamúria,eu com a mão dele na minha,nem tava dando bola pro que via ao meu redor:
_Cabeção,amanhã vamos jogar bolita,falar nisso ta quase chegando a temporada da pandorga,vou te levar no côco do padre e te mostrar como se faz, se quiser pode segurar a linha,tu quer?

Nenhuma resposta,encostei minha cabeça na dele,não ouvi sua respiração,a cor tinha mudado não tava mais pálido, mas começava a ter um tom amarelado:
_Mas se não quiser não precisa ir,podemos ler o Pinóquio,ou o sitio,ou escutar musica no rádio,as lágrimas rolando pelo meu rosto.
Uma mão encostou em meu ombro,sua mãe se abaixou e encostou a boca no meu ouvido,sussurou:
_Ele partiu.

Empurrei a mão com força:
_Carlinhos,vamos escutar a fita do balão mágico e depois vamos na venda comprar figurinha pro nosso albun,por favor acorda,Carlinhos,por favor,eu preciso de ti,não faz isso comigo,acorda amigo,acorda!

Nada,só silêncio,nenhum gesto,eu olhava pro seu rosto avidamente esperando um movimentinho,nada.
Fui puxado gentilmente,consegui me soltar e falei com raiva pra ele:
_TU É RUIM,PORQUE EU NEM SABIA QUE TU EXISTIA , EU ERA FELIZ,AGORA TU VAI EMBORA E NEM ME CONVIDOU,QUE AMIGO É ESTE,ME DIZ,ME DIZ!!!,ESCUTA,CARLINHOS, NUNCA,NUNCA VOU TE PERDOAR!!!!!!!
Ai que dor no peito,que vida desgraçada,que vida miseravel!
Fui embora furioso,sua mãe me abraçou e me agradeceu,não entendi o agradecimento,na rua todos falavam a mesma coisa ,sua morte,foi todo mundo ir ver seu corpo,eu não,não quis ir no velório,nem ao enterro, tava furioso com ele, me traiu,traiu minha amizade,se tivesse pedido teria acompanhado ele,eu poderia empurrar sua cadeira.Afinal tínhamos feito um acordo!

Depois de uns dias ,um caminhão encostou e carregou a mudança,a mãe de Carlinhos me chamou pra se despedir,seus olhos vermelhos,rôxo embaixo das pálpebras,me abraçou bem apertado:
_Ele foi feliz graças a ti,obrigado por isto,se puder um dia o perdoa !

Partiu,nunca mais a vi.






_Vai tomar no cú,ladrão!
_Engole o que tu disse!
_Vai tomar no cú!

Saindo do beco que vem do frigorifico, no final do expediente,dou de cara com a criançada jogando bolita,os mesmos gritos,agora a rua esta asfaltada,agora meus cabelos estão brancos,meu pai morreu,meu tio morreu,meus avós morreram,os vizinhos morreram,meu cachorro morreu, minha infância e por fim morri eu,só o que restou foi uma pálida lembrança do que fui ,um fantasma,uma imagem refletida num espelho estilhaçado.Todos morreram.
Olho pro terreno onde ficava a casa dele:
_Ainda não te perdoei,tenho inveja de ti,Carlinhos!


Fim.

Edson Novais,Rio Pardo,Rs

Um comentário:

Obrigado pelo seu comentario,é muito importante para mim,me faz crescer,grande abraço.