domingo, 31 de julho de 2011

O Show Tem Que Continuar (Guitar Man)

A van corre no asfalto negro,é noite,os faróis iluminam a estrada,a faixa branca causa um certo tédio,recosta a cabeça no encosto do banco,no rádio toca uma musica do Shaggy,as pálpebras parecem que tem chumbo,se fecham.
Imagens vem e vão,relembra tudo.

Valeu a pena?




Alguns dizem que ele não existe,outros juram que sim,será mesmo que dom existe?
Será o dom um presente que Deus dá aos seres humanos?
Música,esportes,oratória,escrita,canto,serão dons,ou ferramentas que de tanta prática se chega a excelência?Mas como se explica, crianças que sem saberem lerem tocam piano estupendamente?

Não sei.
Seu nome é Cezar,mas pergunte quem é Cezar e ninguém saberá,pergunte por Fofo e todos saberão.
O garoto mora em Ramiz,a família é grande,o pai trabalha dirigindo ônibus em Porto Alegre,a renda vem dele e consequentemente é insuficiente,não tem vida de luxo,quase ninguém tem, com os amigos joga bola,brincam,é feliz, como só as almas inocentes sabem sê-lo.
No rádio a pilha ouve as músicas populares e aquilo mexe com ele de uma maneira fora do comum,os dedinhos longos e magros procuram as notas na calça desbotada,como sabia as notas se nunca tinha pego num violão?Mas sabia,e na sua cabeça tinha também o som,precisava do instrumento, senão não teria sossego.

Decidido, juntou no lixo uma lata de azeite quadrada,o menino cor de cuia,magrinho, procurava febrilmente no entulho um pedaço de madeira que servisse de braço,achou!Mediu,serrou e deu por aprovado,encaixou na lata,agora faltava as cordas,procurou no material de pesca do pai, linhas que serviriam pro seu objetivo.
_Fofo,vem cá pra apanhar!

Era seu irmão,gigante,a voz um trovão,se não fosse seria pior,aproximou-se lentamente,o tapa no rosto foi violento, o garoto tastaviou ,não chorou,engoliu,melhor seria se tivesse chorado,choro guardado a gente não esquece.

Pediu linha pra vó,ah a vózinha sempre rindo,sempre amorosa,uma luz no meio de uma infância carente,carente de afeto,carente de amor,carente de tudo.
Ela arrumou a linha,várias linhas pra falar a verdade,Fofo sabia intuitivamente que teria que pôr cordas de diferentes grossuras pra dar as notas musicais.
Dias ficou nesta função,mas finalmente estava pronto,tentava acompanhar as músicas do rádio,e sem demora estava tocando,pontiando as canções.
Num belo dia estava em frente de sua casa de madeira velha,rua de chão batido,cascalho,poeira,era um verão quente,parecia que um vapor saia do chão,as cigarras cantavam até estourarem,o guri pontiava seu violãozinho quando Oniro,um musico profissional,ouviu e viu o pontiado,ficou bobo ,não atinava como tirava som duma lata de azeite.O levou pra mostrar aos amigos e decidiu que o queria na sua banda”profissional”.
_Eu vim aqui pedir pra senhora deixar o Fofo tocar na minha banda.
_Ma ele é uma criança!
_Eu me responsabilizo,levo e trago em casa,e pago!
_Certo,concordo, mas quero que o cuide como se fosse seu.

Assim foi feito,deu um violão verdadeiro que era quase do mesmo tamanho que ele,e foi tocar na localidade Lima Brandão,um distrito de Rio Pardo,nunca foi tão feliz ,sabia que tinha nascido pra isso,a música,o casamento do som que ele produzia,com a bateria,o órgão,e o vocal de Oniro,o salão de chão batido,as paredes de madeira,as caixas de som plugadas em bateria de caminhão,mas o povo dançou,riu feliz ,a noite inteira.
Fio de Cabelo,Pintadinha,No Rancho Fundo,o povo se divertiu,o garoto virou profissional,ganhou dinheiro,deu todo pra sua mãe,dali em diante seria assim,tocava e trazia dinheiro pra casa,o menininho sem saber ajudava a criar os irmãos.
Do violão não se desgrudou mais,tocou em todos os salões da cidade,e já era conhecido,do violão pra guitarra foi um passo natural,aliás, guitarra era uma extensão de seu braço,tocar guitarra era como respirar,uma necessidade.

Seu pai,um homem imenso,sério,como antigamente era feio homem demonstrar amor ele nem ria,o guri tinha medo dele,assim mesmo, criando coragem pediu uma guitarra para o pai,gaguejando,suando,tremendo se aproximou,sem contar que a guitarra era pra ganhar dinheiro pra ajudar na casa:
_Eu te dou,mas tu tera que merecer,quero que faça uma cerca de taquara em todo o terreno,quando eu voltar pra Rio Pardo quero ela pronta.

Tinha uma semana de prazo ,a cerca teria mais de cem metros quadrados,foi pro mato sozinho,as mãos sangravam,o cansaço ,a vontade de brincar,mas não podia,chuva,sol,nada o impedia.O prazo estava se esgotando faltando dois dias o irmão e sua mãe ficaram com pena e o ajudaram.

O taxi parou na frente da casa,o velho leão desceu,o menininho tava na frente,com um olho nele e outro nos pacotes que desciam,nada da guitarra!
O pai sério,olhou a cerca,o garoto com os ombros caídos,os olhos rasos dágua,as lágrimas prontinhas para caírem,o velho voltou para o carro e pegou seu sonho pelo braço,lá estava ela,sua primeira guitarra!!!!

Quis abraçar o pai mas nao teve coragem e ousadia,as mãozinhas rachadas agarraram febrilmente seu grande amor.
Conheceu nesta época Cristiano que também tocava guita,seu amigo Clauber também estava tocando,convenceram Góri a tentar também.Fofo passou a tocar na cidade,os play o descobriram, chamavam-no de Jimmy Hendrix,vinham buscá-lo pra tocar na rua João Pessoa,palco da ferveção.


O tempo passava, Cláuber, estava formando uma banda no rastro do sucesso de bandas de pagode,juntou vários amigos,com o vocal de Arildo,umas voz extremamente linda,límpida,o grupo Mocidade,desde sua primeira apresentação foi um sucesso,nosso guitarrista foi convidado a participar do grupo tocando violão,e o sucesso crescendo cada vez mais,ao ponto de chamar atenção de empresários picaretas,que viram ali uma fonte de dinheiro,foi estrondoso o Grupo Mocidade, por onde passavam lotavam ginásios,eram assediados,paparicados,mas dinheiro nada,só promessas.

Retumbante também foi a amizade com Arildo,uma pessoa carismática,carinhosa,com uma energia ,uma eletricidade,uma fome de viver que o acabou consumindo vorazmente.
Roubados, sem grana, a banda terminou,mas a amizade com Arildo permaneceu,tocaram juntos, uma das maiores emoções foi quando Cazuza morreu e ele fez um tributo no clube Taquari,cantou durante duas horas a dor de um artista que não soube lidar com a vida,ironicamente Arildo também morreria um tempo depois.

Arildo morto.
Não dava para acreditar,um pedaço dele morreu também,Clauber tocava noutra banda,Cristiano tinha a sua própria,nosso musico criou a sua própria chamada Swing da Lata ,com um jovem vocal promissor,Diovane,tocaram por um longo tempo,até que o desgaste natural os separou.

Antigamente,músico era algo que não tinha muito,hoje dá em árvore,parece que a juventude descobriu a música,todos tocam,o mercado foi encolhendo,Cezar casou,aliás como todos os seus amigos,o tempo passava velozmente,agora com um filho ,precisava de um emprego com mais segurança e foi para o frigorifico.

Os primeiros fios de cabelos brancos aparecem,trabalhando fixo, fica mais difícil, enquanto os bois passam na nora, seus dedos marcam compasso na calça,as mãos morenas marcam o tempo de uma canção que toca na sua cabeça.
O menino e o homem se encontram neste gesto.
A água passou, inexoravelmente, embaixo da ponte,o garotinho,o menininho,o jovem nunca deixou de tocar,seria como deixar de viver,trabalha e toca nos finais de semana.
Tem banda com o amigo de infância Cris, Clauber é militar, se apresenta na banda do exército,Góri é promoter,a vida seguiu seu rumo,ainda se vêem com freqüência,ainda são amigos.
Hoje irão se apresentar em Rio Grande,ajuda a carregar a condução,guitarra,baixo,caixas,abre a porta,senta-se,liga o radio,fecha a porta e partem.



A van corre no asfalto negro,é noite,os faróis iluminam a estrada,a faixa branca causa um certo tédio,recosta a cabeça no encosto do banco,no rádio toca uma musica do Shaggy,as pálpebras parecem que tem chumbo,se fecham.
Imagens vem e vão,relembra tudo.
Valeu a pena?
Não sabe,o tempo dirá,só sabe que faria tudo novamente.


Edson Novais,Rio Pardo,Rs

P.S:Dedico esta história verdadeira,com carinho e afeto,ao Guitar Man Fofo

Um comentário:

Obrigado pelo seu comentario,é muito importante para mim,me faz crescer,grande abraço.